
Elas decidiram: três histórias sobre aborto
“Ter um filho nunca me passou pela cabeça”, afirma Sara. A jovem brasileira mora na Europa, sempre disse que morreria sem ter um filho “e separaria se meu marido quisesse um”.
Soninha é estudante da Universidade de Brasília (UnB), e nunca soube se queria ter filhos no futuro. Questionada, ela sempre devolve a pergunta com outra: “Como eu criaria meus filhos nesse mundo terrível?”.
Thaís tem um filho e trabalha como funcionária pública, mas não pretende engravidar novamente.
Sara, Soninha e Thaís são mulheres muito diferentes, mas todas fazem parte de uma mesma estatística. No Brasil, uma em cada cinco mulheres já realizou um aborto.

Parecia um dia como qualquer outro, não fosse o enjoo que Soninha sentiu ao acordar pela manhã. E durante a aula. E à noite. E também no dia seguinte. Receosa, comprou o teste de farmácia. Temerosa, foi ao ginecologista. Incrédula, pegou o resultado do ultrassom. Estava grávida.
Sara sabia que sua menstruação estava atrasada, não vinha há quase dois meses. Faltava coragem para enfrentar a realidade. Após exatas oito semanas, comprou o teste de gravidez. Positivo.
Thaís conhecia os sintomas, já teve um filho e também já abortou. Com a mãe católica e o pai militar, preferiu guardar segredo da família e decidiu interromper a gravidez novamente.
Pelo Código Penal Brasileiro (artigos 124 a 128 de 1940), provocar aborto pode resultar em pena de um a três anos de detenção. É uma das leis mais restritivas do planeta. No mundo, o aborto é permitido em 56 países (ONU, 2011), no geral até a 10ª-16ª semana de gravidez (saiba mais aqui). No Brasil, nos próximos dias 3 (sexta) e 6 (segunda) de agosto acontecerá um audiência pública sobre a descriminalização do aborto até a 12ª semana no Supremo Tribunal Federal (saiba mais).
Soninha guardou segredo dos pais. “Eu fiquei com medo deles não me apoiarem, quererem que eu tivesse o filho. Eu não estou preparada para isso.” Apenas o namorado e duas amigas sabem. Sozinha, encontrou um site na internet que importa remédios de outros países. Cruzou os dedos para que desse certo. Deu.
O sentimento era de medo. “Acho que o mais difícil é conseguir ajuda. Me senti muito sozinha. Parecia que ninguém nunca fez aborto, e eu senti medo de dar errado”, desabafa Soninha. Mas ela está segura de sua decisão. Depois de duas semanas, o remédio chegou pelo correio. O procedimento irá durar 48 horas, dizia a bula.
Tomou o primeiro comprimido à noite, e logo em seguida começaram as dores e o sangramento. Com analgésicos e compressas quentes, o namorado e a amiga tentavam diminuir o sofrimento. Conforme orientação recebida via email, 24 horas depois ela tomou o medicamento que faltava. Os sintomas se intensificaram ainda mais. Na manhã seguinte, depois de uma noite de sofrimento, Soninha acordou.
“As cólicas eram muito fortes. O aborto é uma experiência muito forte. Em relação ao meu corpo, foi um alívio. Grávida, eu me sentia muito mal, parecia outra pessoa. Gritava com meu namorado, sentia enjoo o tempo todo. Foi muito bom voltar a me sentir eu mesma”, afirma.
Hoje, Soninha admite ter conseguido tirar um significado positivo de tudo que aconteceu. “Eu parei para pensar muito mais no que eu queria para a minha vida.”
Sara contou para os pais. “Minha mãe estava desconfiada, por causa da tontura e dos enjoos. E eu precisava da ajuda deles. Eles levaram numa boa. Meu pai me levou ao ginecologista e me acompanhou durante todo o procedimento.” De férias na Inglaterra, o aborto acontecerá lá mesmo, onde é legalizado desde 1967.
Chegando ao hospital, se deparou com dezenas de jovens esperando atendimento. “Conheci meninas da minha idade que já haviam abortado, lá isso não é tabu. O aborto é legal e o procedimento é bem comum, inglesas também ficam grávidas cedo”, relata. Sara estava com mais de oito semanas de gravidez, impossibilitando o uso de medicamentos abortivos (como é o caso de Soninha e Thaís).
Os médicos explicaram que o procedimento iria durar cerca de uma hora. Decidiu, então, pela cirurgia.
Quando entrou na sala de operações, Sara se lembra de ter deitado numa cama “e que me deram anestesia geral. Acordei meia hora depois, ainda um pouco tonta,” lembra. Dali foi levada de maca para uma sala de repouso. “Depois de 20 minutos descansando, ganhei um sanduíche e fui para casa, normalmente.”
Hoje, Sara se sente bem. “Voltei a uma vida normal rapidamente e na minha casa nunca mais se falou no assunto.”
Thaís foi na Ceilândia (Brasília, DF) e comprou os remédios no mesmo lugar que visitara alguns anos antes.
Já no dia seguinte seguiu as instruções e tomou os remédios. Na manhã seguinte os enjoos continuaram. O teste confirmou: continuava grávida. Ela decidiu então aumentar a dose do medicamento. Funcionou.
Ou melhor, não estava mais grávida, mas o procedimento não funcionou como devia. Decidiu ir em algum lugar fazer uma curetagem, para remover as células que não foram expulsas pelo corpo. É um procedimento simples, mas a clínica não era segura. Depois de dois dias, começou a ter febre e descobriu que estava com uma infecção generalizada.
Tentou atendimento em três hospitais diferentes, mas teve o socorro negado. Há relatos de que médicos costumam tratar mal ou mesmo negar atendimento a mulheres que chegam ao hospital e eles desconfiam que elas abortaram. No quarto hospital Thaís finalmente conseguiu ser internada. Era aniversário de seu filho. Uma amiga recorda a situação: “Poucas pessoas sabiam e não se podia falar sobre isso. Ficou um clima muito estranho. As pessoas começaram a levantar hipóteses e a criar histórias”.
Depois de uma semana sentindo muita dor, Thaís faleceu.
Sua morte se deu após cinco dias de internação (sete dias depois de ter ingerido os medicamentos abortivos). Como a família não fez uma autópsia, não há meios para comprovar se há ligação entre os eventos. Segundo médico consultado pelos amigos mais próximos, o mais provável é que tenha havido contaminação no procedimento de curetagem.
Todos os nomes citados neste texto são fictícios. As histórias são absolutamente reais.
Para contar a história de Thaís entrevistei duas de suas amigas mais próximas. Sara e Soninha foram entrevistadas pessoalmente e/ou via Skype e acompanhei o procedimento de uma delas.
Ilustração: @thaisgcunha
Este texto foi publicado originalmente na nona edição da Revista Vírus Planetário, em 2011.
Na próxima sexta o STF realizará uma audiência pública sobre a descriminalização do aborto. Saiba mais aqui.