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As canetas de Bolsonaro

As canetas de Bolsonaro

No começo do mês (abril), Bolsonaro disse que usaria a “caneta” contra pessoas de seu governo que, segundo ele, teriam “virado estrelas”. O recado, bem direto, era para o Ministro da Saúde. Na semana passada, Mandetta foi demitido.

Mas a verdade é que a caneta já tem sido usada pelo presidente há muito tempo. Me refiro não ao instrumento para escrita ou desenho, mas ao lance no futebol em que um jogador dribla o adversário passando a bola por entre as suas pernas. É basicamente o que Bolsonaro tem feito com a esquerda (e parte da imprensa) desde que foi eleito.

A estratégia de Bolsonaro

Ainda durante as eleições de 2018, fui um dos que produziu uma série de vídeos e artigos explicando qual era o plano de comunicação do então candidato pelo PSL e porque era tão importante estudarmos o assunto. A estratégia que ele usa continua basicamente a mesma.

Explicando de maneira resumida, a principal ferramenta usada pela extrema-direita tem sido o firehosing ou, no português, Jato de Mentiras (saiba mais). Já percebeu que a maioria das fake news são tão ruins que é até difícil de contra-argumentar? Isso acontece porque o objetivo não é necessariamente convencer o outro. Precisamos lembrar que as últimas eleições foram as da “mamadeira de piroca”. A mentira, individualmente, não importa. Com esse Jato de Mentiras, eles conseguem nos colocar na defensiva, fazendo com que percamos tempo e energia desmentindo notícias que muitas vezes não fazem nenhum sentido, sobrando menos tempo para falarmos das nossas próprias ideias. E esse não é o efeito mais perverso. Outra consequência é que, com esse fluxo intenso de informações mentirosas, as pessoas ficam cada vez mais sobrecarregadas e desconfiadas de tudo. Assim, passam a acreditar apenas em conteúdos que digam o que elas já acreditam ou que reforcem o senso comum, e em líderes que se posicionam de maneira populista, supostamente atacando o “establishment” e se posicionando como “fora do sistema”. Alguma coincidência com alguém que você conhece?

Com a eleição de Bolsonaro sua estratégia não mudou muito, mas definitivamente o alcance cresceu exponencialmente na medida em que ele agora tem acesso a todo o aparato estatal. Outras táticas surgiram, como o aumento da exposição do presidente e dos seus filhos em redes televisivas como Record e SBT, mas o que mais me preocupa é como se “profissionalizou” o assim chamado “Gabinete do Ódio”, que é basicamente um grupo de profissionais pagos com dinheiro público (e privado) para criar fake news e pensar as melhores táticas de propaganda; e como as análises de conjuntura de boa parte da esquerda continuam não enxergando esta situação. Estamos vivendo numa época em que 55% das publicações pró-Bolsonaro no Twitter são realizadas por robôs, mas continuamos, por exemplo, preocupados com a hashtag que está nos TTs (trending topics, os assuntos mais comentados na rede social).

A barriga

Antes de continuar, um parênteses. No jornalismo, chamamos de “barrigada” ou simplesmente de “barriga” quando um profissional divulga um conteúdo equivocado, comumente associado a alguma informação de bastidores. É quando, por exemplo, o assessor de um político conta um segredo para um jornalista e, apesar de não ter como conferir totalmente a veracidade do fato, o profissional anuncia a novidade – para, em seguida, descobrir que se tratava de uma mentira. Isso pode acontecer por vários motivos, mas a razão que nos interessa aqui é quando o jornalista é propositalmente induzido ao erro para descredibilizar a imprensa.

Claro, não foi Bolsonaro quem inventou isso – é algo que sempre aconteceu na relação da política institucional com a imprensa. O exemplo acima, do assessor que solta uma informação falsa para um jornalista, já é clichê. A diferença é que agora este não só é o protocolo oficial do governo como é só uma parte pequena do problema.

A batalha, ao que parece, tem sido contra moinhos de vento. Em março, chegou-se ao cúmulo de Bolsonaro emitir uma Medida Provisória para em seguida revogar um dos artigos (o que permitia a suspensão do contrato de trabalho por 4 meses, sem salário para o funcionário). Quando um governo tem como política divulgar informações contraditórias, como a imprensa deve noticiá-las? E os partidos de oposição, como reagir? Será mesmo que a revogação foi uma vitória, e não parte do plano? Mas se não comemorarmos estas pequenas conquistas, o que nos resta?

O drible de barriga

Mas vamos voltar ao assunto original. Depois de semanas em que a imprensa não parou de noticiar que “Bolsonaro teria perdido apoio até dos militares” e da impossibilidade dele continuar com a postura de negação da ciência, de milhares de panelaços contra Bolsonaro e em defesa da Saúde Pública, de grandes editoriais da esquerda conclamando a impossibilidade do presidente continuar à frente do país e até do Mandetta – um lobista dos planos de saúde e Ministro, até ano passado, medíocre – ter sido alçado a um posto de herói nacional e quase unanimidade no país… o médico e ex-deputado federal anunciou em rede social que foi demitido do Ministério da Saúde.

Dada a postura de Bolsonaro e Mandetta desde o início da pandemia, todos nós imaginávamos que isso eventualmente poderia acontecer – mas não sem uma grande comoção popular e, para os mais otimistas, o estopim de um processo de desgaste que poderia deflagrar de vez o impeachment e/ou afastamento do presidente da República. Nada disso aconteceu.

E não aconteceu porque a demissão foi construída aos poucos. Cada nova declaração, recuo e avanço do governo preparava o terreno. E, pra mim, o acontecimento mais revelador desta postura foi a “barriga” do dia 6.

Naquela segunda-feira, a imprensa passou o dia dando como certa a demissão do ministro. E, de fato, se a demissão tivesse acontecido naquele dia, provavelmente teria gerado um desgaste para o governo. Mas esta, pra mim, nunca foi a intenção de Bolsonaro. Foi uma nota plantada na imprensa para descredibilizá-la – e aos partidos da oposição. Nas redes sociais, o presidente passou dias acusando “as mentiras” da “extrema-imprensa” e de fato ele tinha um ponto. Ou melhor, uma barriga, para culpar. Para a base de apoio dele, é mais do que o suficiente.

Não estou dizendo que era melhor a oposição não ter feito nada. Se não houvesse tido reação alguma, possivelmente o ministro teria sido demitido aquele dia mesmo. Mas a gente não pode tomar um drible e anunciar que saiu vitorioso só porque a jogada não terminou em gol. O jogo já está 7×1, e estamos perdendo. Não sou eu quem está dizendo isso, é só olhar em volta.

Ganha-ganha

O placar do jogo fica ainda mais evidente quando nos damos conta que, apesar de seguirmos anunciando as supostas derrotas do ex-capitão e sua suposta perda de apoio, objetivamente isso não significou nada em termos de conquistas reais para a população. Até vitórias reais como o auxílio emergencial de 600 a 1.200 reais tem perdido a importância devido aos esforços do governo federal em atrasar e dificultar os pagamentos e, por mais contraditório que seja, da sua cooptação. O “coronavoucher” já está sendo chamado em muitos lugares de nomes como “Auxílio do Bolsonaro”.

Você pode estar pensando: “Ok, até faz um pouco de sentido tudo isso que você está falando, mas pelo menos não temos o Osmar Terra no Ministério da Saúde. Isso não é uma vitória?”. Mais conhecido como “Osmar Terra Plana”, o deputado federal pelo PMDB é notadamente um negacionista científico. De fato, do ponto de vista da população, seria melhor ter um poste no comando da pasta do que o Osmar Terra. Só que, do ponto de vista da estratégia do Bolsonaro, também seria ruim ter Osmar Terra nessa posição.

Vamos voltar ao que eu falei lá no começo: com o fluxo intenso de informações mentirosas e as pessoas cada vez mais sobrecarregadas, elas passam a acreditar apenas em conteúdos que digam o que elas já acreditam ou que reforcem o senso comum, e em líderes que se posicionam de maneira populista, supostamente atacando o “establishment” e se posicionando como “fora do sistema”. Se Bolsonaro indica alguém totalmente alinhado com ele, toda responsabilidade recairia também sobre ele, e é tudo que ele não quer. É óbvio que ele nunca vai chamar um Ministro de esquerda ou um profissional técnico de grande renome (não é por acaso que lá atrás ele demitiu Ricardo Galvão, ex-diretor do INPE e que chegou a ser escolhido como um dos 10 maiores cientistas do ano pela revista Nature): estas pessoas conseguiriam apontar que “o rei está nu”. Agora, algum tipo de “competição” entre amigos faz todo o sentido, porque o Bolsonaro consegue ganhar em todos os cenários.

Se as medidas de isolamento derem resultado e tivermos um número abaixo do esperado de mortes, será uma vitória do Bolsonaro – afinal de contas, ele quem indicou o ministro. Com a subnotificação que estamos tendo pela falta de testes e o nível de descolamento da realidade cada vez maior da população, esta me parece uma hipótese bem provável. Talvez a mais otimista.

Se o desemprego aumentar e a situação da economia piorar muito (e isso pode acontecer com ou sem um grande número de mortes pela covid-19), será uma vitória do Bolsonaro – afinal de contas, “desde o início ele alertou que o isolamento total iria arruinar o país”.

Se, infelizmente, aumentarem as mortes, Bolsonaro acusará os cientistas e gestores públicos de não terem dado ouvidos a ele (e ao Trump), que desde o início estão fazendo campanha pela cloroquina como pílula mágica para resolver todos os problemas (ainda que o fármaco esteja de fato sendo produzido pelo governo e utilizado, o que tem inclusive causado ainda mais problemas).

Enfim, acho que deu para entender, né?

Desafio

Com os governadores aplicando as medidas de isolamento, o governo atrasando e dificultando o auxílio emergencial e não apresentando soluções para micro e pequenas empresas, a tendência, infelizmente, é que de fato haja um aumento no número de desempregados e uma piora substantiva da situação econômica. E o que vemos como resposta, cada vez mais, são carreatas e até manifestações exigindo o fim do isolamento, como a que aconteceu hoje (19) em Brasília. É óbvio que estas passeatas são artificialmente infladas por grandes empresários e pela base do Bolsonaro, mas ainda assim estamos perdendo este debate! E não é porque as pessoas são idiotas, como eu vejo muita gente acusando. 62% de quem recebe até dois salários mínimos declararam ser a favor do isolamento. Numa conjuntura ideal, com o Estado garantindo a produção e distribuição de comida e itens básicos de higiene e proteção, mais investimentos em saúde e garantia de saneamento básico a todas e todos, a população ficaria em suas casas e enfrentaríamos esta pandemia com muito sucesso, como outros países tem feito. Mas não é nada disso que está acontecendo.

Os mais pobres, que nunca puderam contar com o Estado senão para repressão, mais uma vez estão sendo os mais afetados. Quando 47% dos mais pobres querem jovens de volta ao trabalho com máscara não é porque sejam ignorantes, é porque o Estado e as políticas públicas têm ignorado a sua realidade! E realidade, inevitavelmente, bate à porta.

Vejo nós da oposição de esquerda fazendo um excelente trabalho no parlamento, impedindo os ataques do governo e aprovando propostas para garantir um mínimo de suporte ao povo neste momento (como o auxílio emergencial, que já citei); e também desenvolvendo e incentivando projetos de doações de alimentos e de transferência de renda que já deveriam ter sido prioridade há muito tempo, e espero que continuem com força mesmo depois dessa pandemia (alguns, seja dita a verdade, já existiam há muito tempo). A população tem se organizado de maneira autônoma, com panelaços praticamente diários em desafeto ao presidente. Mas nada disso – peço perdão pelo pessimismo – será suficiente, se não enfrentarmos o problema também no nível macro. Toda lei aprovada no Congresso precisa da sanção e atuação do presidente (e, como já disse, pode ser cooptada). Todo projeto social, por maior que seja, será insuficiente se tiver que enfrentar a atuação contrária do Estado, que é o caso. As manifestações, por maiores que sejam, possuem um limite devido ao isolamento social.

Não tenho soluções para tantos desafios, e acho que nenhum de nós tem. Precisamos continuar, juntos, construindo respostas para essa conjuntura. O que definitivamente não podemos seguir fazendo é ignorar a profundidade da situação se quisermos enfrentá-la e garantir uma saída definitiva para a crise em que vivemos. O problema, infelizmente, é muito maior do que a pandemia – e vai continuar depois dela.

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Sobre o autor

Thiago Vilela

Atualmente é coordenador de Comunicação do Dep. Distrital Fábio Felix. Graduado em jornalismo pela Universidade de Brasília, fez intercâmbio em Belas Artes na Universidade do Porto e Artes Gráficas na RedZero (Full Sail University, incompleto). Cofundador da Casa Vegana de Brasília, trabalhou como Assessor na Comissão Nacional da Verdade (CNV) e na Câmara dos Deputados, no mandato do Dep. Federal Chico Alencar. É fundador deste site.

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Beth França

Parabéns pelo texto <3