
Vacina também não é pílula mágica

Desde o início da pandemia tenho denunciado como é perigoso o uso político e não-científico que tem sido feito de fármacos como a cloroquina, que é um medicamento importante no tratamento de doenças como malária e lúpus mas não possui nenhuma eficácia comprovada contra a covid-19 – muito pelo contrário. Infelizmente, todas as principais pesquisas indicam que ela é tão eficiente quanto tomar água com limão (o que eu adoro, aliás, mas não espero que isso cure qualquer doença).
E não é a primeira vez que Bolsonaro tenta emplacar uma “pílula mágica” – essa promessa de uma solução fácil, aliás, é a base de todo charlatanismo e sempre fez parte do seu discurso político.
Há anos, por exemplo, que ele promete que a exploração do nióbio faria a economia do Brasil “deslanchar”. Ele já é presidente há quase dois anos, cadê os resultados? Pior ainda sua participação na liberação da pílula do câncer – fármaco experimental que foi permitido para consumo por meio de lei (uma de suas únicas leis aprovadas) e que acabou sendo proibido pelo STJ, por não apresentar evidências científicas. Solução para o “problema da segurança”? Liberar as armas para toda a população (mesmo que estudos apontem que isso só aumente o número de mortos). E por aí vai.
E estou falando disso tudo porque ao ver a euforia com que foi tratada na imprensa e nas redes a tal “vacina russa”, anunciada pelo presidente Putin no começo da semana, só consegui refletir e chegar a conclusão de que não estamos aprendendo nada com tudo isso que aconteceu.
Ciência é ciência
Eu sei que todo mundo quer uma vacina e que é muita cara de pau os defensores da cloroquina e do ozônio no c* virem a público questionar a vacina russa porque ela não teria “comprovação científica”. Hipocrisia ou não, eles tem um ponto. O fato é que a vacina russa não teve os dados publicados em lugar nenhum!
A única diferença entre uma vacina “secreta” e uma poção mágica está no nível da nomenclatura. Tanto que entidades como a Organização Mundial da Saúde (OMS) já afirmaram que aguardam resultados para tomar posição sobre o medicamento. Não estou falando aqui da Rússia liberar a fórmula da vacina online e um tutorial no Youtube para todo mundo fazer em casa, mas da publicação do RESULTADO dos experimentos, como estão fazendo as mais de 100 vacinas em teste atualmente.
O presidente Putin afirmar que a vacina funciona e que a filha foi vacinada não comprova absolutamente nada nem deveria dar segurança pra ninguém (aliás, porque a mulher e não o próprio presidente?). Aliás, qual a diferença disso em relação à postura de Bolsonaro, que ao ser testado positivo para coronavírus anunciou em suas redes sociais que estava se tratando com cloroquina?
PS: para quem tem dúvidas de como funciona cada fase do desenvolvimento de uma vacina, o biólogo Hugo Fernandes fez um resumo em seu Instagram que achei muito didático.
Não é pílula mágica
Pessoalmente acredito que a vacina realmente esteja em desenvolvimento e a Rússia simplesmente está seguindo uma péssima tradição que vem desde a URSS de esconder e censurar a ciência. Outra possibilidade é ter havido alguma postura ética questionável em alguma das etapas (no começo de julho, Reino Unido, EUA e Canadá acusaram a Rússia de usar crackers para roubar pesquisas sobre a vacina). Enfim, não é esse o ponto.
Fato é que, ainda que seja tudo verdade e que tivéssemos uma vacina amanhã, na prática nossa rotina não vai mudar tão cedo. Desculpa o balde de água fria, mas não tem outro jeito de dizer isso. E eu sei o quanto faz pouco sentido dizer isso num país em que grande parte da população já voltou a uma rotina praticamente normal por não ter direito ao isolamento social, mas precisamos refletir sobre estas questões.
Primeiro que a logística envolvida para produzir e distribuir a vacina, qualquer que seja, em quantidade suficiente para imunizar o mundo inteiro não será nada rápida.
Ainda que esta etapa seja rápida, e se tivermos que tomar duas ou mais doses da vacina para ela fazer efeito? No caso da vacina da dengue, por exemplo, são três doses com intervalos de seis meses, ou seja, você só fica imunizado depois de 1 ano da primeira dose (tive dengue hemorrágica esse ano, recomendo vocês irem atrás da vacina). Mesmo que seja dose única, nosso organismo demora algum tempo para produzir os anticorpos, não vamos tomar a vacina de manhã e ir pra “balada pós-Covid” à noite (por mais que pareça uma excelente ideia).
E ainda tem outra questão, pouca abordada, que é a efetividade das vacinas. Como o biólogo Átila bem explicou essa semana nas suas redes sociais, vacinas como a da gripe imunizam apenas cerca de 60% de quem toma. Qual será a porcentagem de imunizados na vacina da covid-19? Ainda não sabemos.
Antes de termos segurança para sair normalmente às ruas e eventos públicos vamos precisar que a grande maioria da população esteja vacinada. O problema é coletivo, e a solução também precisa ser – mas nada indica que o trataremos dessa maneira no Brasil.
Por aqui (e em todo o mundo) os negros e mais pobres são os que mais morrem pela covid-19 e os que possuem menos acesso a testes (o que indica uma subnotificação absurda). Se a situação continuar seguindo a mesma lógica, esta população também terá acesso por último à vacina – o que não faz o menor sentido do ponto de vista racional, científico e, mais importante, humano.
Se não tiver vacina pra todo mundo, quem tomou a vacina também estará desprotegido.
Ainda tem outro problema a ser avaliado, que é imaginar como todo esse processo vai se desenvolver em países em que há um forte movimento antivacina, como nos EUA – possivelmente em ano eleitoral. Mas isso é assunto para um outro dia.
Quem puder, por favor, fique em casa.
Até a próxima,
TDV