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Jornalismo e a “polemização” da política

Já faz algum tempo que o canal Porta dos Fundos possui um quadro muito interessante, que é a “Polêmica da Semana”. O roteiro é basicamente o mesmo em todos os episódios, eles pegam um assunto sério e colocam duas pessoas para debatê-lo: um cientista, estudioso, especialista ou pessoa diretamente envolvida com o tema e alguém propositalmente despreparado que só argumenta com mentiras e clichês. Recomendo que, como exemplo, assistam este sobre o uso da cloroquina no tratamento da covid-19:

Todos os episódios começam com o apresentador tentando parecer neutro, justificando que existem “dois lados” e por isso a importância do debate – e no final sugere um caminho “do meio”, como se ambos os debatedores fossem radicais/extremistas e a “verdade” estivesse em algum lugar entre os dois. Não revi todos os episódios, mas geralmente a pessoa despreparada sai vencedora do debate, mas isso pouco importa. Só em ser convidado a participar de um debate o obscurantismo já sai vencedor, independente do que aconteça nele.

O mais triste é que a nossa realidade está tão surreal que se substituíssemos um programa de televisão por um destes episódios aposto que poucos perceberiam a diferença. Aliás, muitos dos programas de debates que temos na televisão possuem exatamente a mesma premissa como roteiro, ainda que, obviamente, os clichês não fiquem tão aparentes.

Será que estou exagerando? Analisemos a última “polêmica”, a questão da vacinação obrigatória.

De um lado temos os médicos, cientistas, pesquisadores, legislação atual, experiência internacional e tudo mais. Do “outro lado” (falarei mais disso a seguir) temos um monte de imbecis que na melhor das hipóteses estão espalhando mentiras para faturar eleitoralmente.

Apesar disso, a maioria das manchetes se refere ao assunto como “a polêmica da obrigatoriedade da vacina” ou termos parecidos. Isso é criminoso.

Também é fundamental lembrar que nenhum assunto possui “dois lados”. Para qualquer tema sempre haverá uma infinidade de opiniões e posicionamentos políticos e ideológicos, e reduzir isso a esquerda e direita ou a “dois lados” é empobrecedor e mentiroso. Pior ainda é se dizer neutro. Neutro nem sabonete, nem a Suíça (slogan da querida revista Vírus Planetário, da qual participei). Concessões públicas possuem o dever de não dar espaço a discursos de ódio e fake news e a promover a ciência e a democracia.

Não estou dizendo que os veículos deveriam censurar qualquer assunto, principalmente agora que o presidente é o garoto propaganda da ignorância e espalha desinformação nas suas redes. Mas precisamos tratar dúvidas, mentiras e discussões sem sentido como dúvidas, mentiras e discussões sem sentido. Chamar de “polêmica” é dar um status a este tipo de linha de pensamento que não poderia nunca acontecer.

Essa “polemização” da política e das notícias está terminando de enterrar o pouco de credibilidade que ainda resta no jornalismo em todo o mundo. Não que a grande imprensa seja referência em credibilidade, mas isso é assunto para outro dia (vou deixar uma indicação abaixo).

Sugestões de textos e livros sobre o assunto:

Padrões de Manipulação da Grande Imprensa, de Perseu Abramo (livro impresso, link afiliado)

Desinformação: crise política e saídas democráticas para as fake news, do Intervozes (livro digital)

Se quiser mudar o mundo: um guia político para quem se importa, de Sabrina Fernandes (opção impressa e digital, link afiliado)

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Sobre o autor

Thiago Vilela

Atualmente é coordenador de Comunicação do Dep. Distrital Fábio Felix. Graduado em jornalismo pela Universidade de Brasília, fez intercâmbio em Belas Artes na Universidade do Porto e Artes Gráficas na RedZero (Full Sail University, incompleto). Cofundador da Casa Vegana de Brasília, trabalhou como Assessor na Comissão Nacional da Verdade (CNV) e na Câmara dos Deputados, no mandato do Dep. Federal Chico Alencar. É fundador deste site.

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